sobre a exposição VERSO



V   E   R   S   O

Arturo Gamero — Beatriz Nogueira — Isadora Ferraz — Malvina Sammarone — Natasha Barricelli — Ruth Alvarez — Taissa Montiel

     A escolha da palavra VERSO, que pertence ao universo da poesia e da literatura, para designar uma exposição de Artes Plásticas explicita a intenção de trazer à tona o que está ali enraizado e oculto na etimologia dessa palavra e que nos serve, aqui, como enunciados: voltar, retornar, o discurso que retorna, voltado para, (re)virado, posto em fuga, revolvido, lavrado, metamorfoseado; página de uma folha de papel que fica oposta à frente; o lado ou face posterior de qualquer objetolado oposto ao principal; reverso; contrário, oposto; linha de escritura; canto do rouxinol; passo de dança; movimento cadenciado; (re)verter; em direção à... (1).
    Prever uma exposição alinhavando sete artistas “nascentes”  - artistas em início de percurso no circuito de Artes Plásticas -, pelo viés de outra artista -  “mais “propositora e menos curadora” -, será então como imaginar um poema em que o conjunto de trabalhos de cada artista desenhará versos — livres, brancos, rimados, metrificados —, versos que anseiam, idealmente, pela composição de um todo.
    E cada verso é feito de fonemas, ritmos, cadências; e cada verso é feito de pesos, medidas, elos e cadeias métricas; e cada verso possui sua linha melódica tracejando unidades de sentido por si só, sem perder de vista a argamassa que congrega todos os sentidos. E cada verso é a subdivisão de um poema convergindo em direção à conquista das formas, aqui aliadas mais à errância de discursos que não coincidem, do que à conformidade da coesão: desenhamos percursos visuais em seus registros incessantes, inacabados, flutuantes, de passagem.
    Amparada pelas palavras precisas de Mário de Andrade em seu pequeno grande ensaio “Do Desenho” (2): “Desenhos são para a gente folhear, são para serem lidos que nem poesias, são haicais, são rubaes, são quadrinhas e sonetos”, a mostra VERSO deseja ver e vislumbrar a vocação originária do desenho alçando seu voo em primeiro plano: “O desenho fala. Chega mesmo a ser muito mais uma espécie de escritura, uma caligrafia...
     VERSO retorna e revira o desenho. Aqui, o desenho é o núcleo rotacional que estrutura a composição desta exposição: desenho-voz, desenho-escritura, desenho-ação, desenho-registro, desenho-corte, desenho-palavra, desenho-arquivo, desenho-medida, desenho-fluxo, desenho-palavra, desenho-caligrafia, desenho-memória, o desenho que fica daquilo que se esvai e que nos escapa.
     Dada a natureza da exposição VERSO, os trabalhos dos artistas Arturo GameroBeatriz NogueiraIsadora FerrazMalvina SammaroneNatasha BarricelliRuth AlvarezTaissa Montiel habitam o espaço expositivo, permeados por procedimentos comuns, indiciando trânsitos e deslocamentos: repetições e aliterações, escrituras visuais dissonantes, desajustes entre as linhas do pensamento e as ações, reapresentações inacabadas, combinatórias entre as partes do todo em suas partes, ênfases disfuncionais do gesto mental que é veloz no tempo transitando fugazmente no espaço, atravessamentos, enfim, qualidades essas que refletem uma ânsia comum em territorializar poéticas singulares em estado de convivência plural.
   Compreendendo o desenho como o esqueleto da linguagem visual, evidenciando a urgência fugaz de um sistema de notações em suspensão, emerge uma pergunta: como reverter a experiência fugaz da poética da gestação de linguagem para a fabricação de poéticas permanentes?
   As características físicas do espaço expositivo do SESC Pinheiros, que podemos considerar o nosso campo representacional para a aventura de aterrissagem dessa “composição”, é marcado afirmativamente pelo plano transparente de vidro — linha de corte e união, simultaneamente — nos oferecendo o espaço em dois gomos, aos pares e em partes, multiplicando possíveis rebatimentos que potencializam a ideia de um todo em direção à proposição originária da exposição VERSO.
     Além dos sete artistas, um oitavo espaço é instalado no coração da exposição, dedicado ao educativo e que denominamos contêiner. Geralmente localizado fora e paralelo às mostras, este espaço voltado às atividades do educativo será o lugar nuclear da exposição, cujas atividades nomeamos TRANSVERSO. O contêiner foi desenhado especialmente para ser um local de convivência, onde os bastidores tornam visíveis as vozes de cada um dos artistas — compositores dessa exposição, coral em consonância! E para tal empreitada convido Claudio Cretti, artista com trabalho consolidado e que esculpe, aqui, um conceito de ação educativa, com poesia e maestria, envolvendo todos os artistas que serão a voz viva do trabalho, sem a habitual mediação: seja nas legendas, seja nas ações educativas (oficinas, visitas guiadas, mesas de conversa).
     A mostra VERSO convoca um espírito de parceria entre os distintos vetores e camadas que alicerçam uma exposição — da assistência direta de Maria da Penha Brant às atividades desenvolvidas por TRANSVERSO á produção realizada por Claudia Vendramini até o conceito do espaço projetado por Alvaro Razuk: todos os significantes e fonemas e sílabas e sons e ações transmutam em significados ali postos, a postos, à vista.
     Cada sinal potencializa uma aposta poética — a produção de cada artista, as relações entre todas as funções geralmente estanques, as idas e vindas entre VERSO e TRANSVERSOreverso e contraversotransverso e aversoadverso e inversouniverso e diverso: das disjunções à busca de um todo inalcançável é o que nos move em direção à conquista de alguma lógica interna, alguma razão insana, arbitrária, alguma argamassa conceitual e perceptiva que ligue as partes e faça valer sentido, versão sempre provisória e transitiva, em rotação.
     E por isso desenho e por isso poesia e por isso VERSO — escrituras visuais para serem lidas, folheadas e vistas, em ritmos e aliterações, em melodias e cadências, retornos em ritornelos, cheios de vontade própria. Do gosto que a arte tem pelo aleatório, sim, pelas regras inventadas em busca de exceções e que se impõem por dentro, tais células nascidas de sensibilidades postas em ações, reapresentadas em formas, sempre formas — existiria alguma outra maneira?
     VERSO é versátil — outra palavra derivada: tudo aquilo que está suspenso prestes a acontecer e já acontecendo na prática da fala e da escuta, reiterado, repetido, sempre o mesmo e sempre outros que se voltam para si mesmos e se projetam em ondas em linhas em palavras, em gestos, em imagens e sons. Não se trata aqui de prosa, de discurso em linha reta direta, mas de poesia cujos versos mudam de linha sem que haja “nenhuma necessidade física para isso” (3), a não ser pelo chamado essencial, sem finalidade funcional, a não ser pela vontade de arte de ser e só!

Parece-me ter traçado uma linha de fumaça. Segue, rompe-se, retorna-se, une-se de novo ou se enrola; e se entrelaça consigo mesma, dando-me a imagem de um capricho sem finalidade, sem começo nem fim, sem outro significado que o da liberdade de meu gesto no ângulo de meu braço...” (4)

Edith Derdyk


(1) Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001. Neste trecho, todas as palavras em itálico são sinônimos da palavra verso.
(2) Mario de Andrade. Do desenho. In: Sobre desenho. São Paulo: FAU-USP, 1975.
(3) Antonio Cícero. Poesia e filosofiaSão Paulo: Civilização Brasileira, 2012. p. 38.
(4) Paul Valéry. Eupalinos ou o Arquiteto. São Paulo: Editora 34,1999. p. 87.

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